segunda-feira, 10 de novembro de 2008

PILLOW BOOK (O livro de cabeceira)

Por Bruna Nehring

Nagiko, desde sua primeira infância, foi criada com a obsessiva valorização do “toque” físico e erótico que pincéis, peles, tintas e caligrafia DEVIAM exercer. Ela fez evoluir um relacionamento emocional com seu pai, quase incestuoso, a partir do momento em que aprendeu com ele o toque do corpo, da pele, da saliva, do cheiro das tintas e o da pele que se modifica após a escrita. A caligrafia, na forma como lhe foi ensinada, extrapolava a arte como arte, carregada no erotismo do toque (lamber a pele, o pincel, a tinta, cheirar a tinta e novamente lamber a pele após ter sido escrita, como vimos o pai ensinar, não com gestos lúdicos ou profissionais, mas com um erotismo exacerbado).

Querer vingar o pai foi – também – a forma que ela procurava para libertar-se dele. Há um momento em que ela, criança, percebe que o pai também usava sexualmente os “mensageiros”. Desencantada pelo pouco caso que o marido dava às suas preferências sexuais (o incêndio dos papéis que agora passa a lhe parecer sacrilégio), ela foge de Kyoto - cidade de templos e religião, sim, mas principalmente de indústrias áridas – para Hongkong. Por que Hongkong? Ainda não é China na intenção do cineasta. É lá que surge em Nagiko a tentativa de cosmopolizar-se, aprender outros idiomas, “caligrafar” - como redescoberta de arte pura - em outras línguas. Entrando no “mundo”, (Hongkong era para ela o mundo no sentido internacional) ela está decidida a liberar-se daquela opressiva obsessão: confundir-se com seres humanos “estrangeiros” que trabalham e produzem, mas que mantém no íntimo (ela acha) o prazer daquela arte como mera arte. Os telefones, a datilografia em ideogramas (máquina complicadíssima que acaba na privada), os bares noturnos. Duvidosa é a existência de bares – ou outro tipo de locais – onde há espaço, e clientela, para a pintura de corpos. Poderia ser um bordel: lá tudo é permitido, bastaria levar seu próprio kit...

É lá que Nagiko parece querer abstrair-se do seu prazer pessoal em ser caligrafada, para começar a querer ver (ela é voyeur sim...), descobrir e “sentir” se os outros exalariam o mesmo prazer sexual ao serem caligrafados por ela ou por outrem. Para fazer isso, ela começar a se deixar caligrafar por escrevinhadores (para tentar “congelar” seu hábito de prazer), até encontrar Jerome, que primeiro ela rejeita, desprezando a qualidade de sua pele, para depois aceitar o desafio do jovem inglês, intrigado por aquela exaltação. Raça dominante, num minúsculo território de cultura anônima depois de centenas de anos de protetorado inglês, Jerome, tão jovem, abre mão de sua superioridade ancestral e se ajoelha perante aquela arte versátil, sensual, arrebatadora. É aí que o amor carnal, numa seqüência de imagens eróticas, dignas de kama-sutra-ad-infinitum, irrompe de forma tão definitiva que veste-se de sentimento, de amor, de espiritualidade. É lá que adquirem significado as cenas de carne jogada ao lixo: primeiro como rejeição da carne (não da pele), inapta à arte, e depois como obliteração dos prazeres da carne suplantados pela ascensão do amor às mais altas esferas do romantismo. Naquela rendição incondicional, Jerome chega a prestar-se como serviçal, levando os textos dela a editores que tinham o hábito, como o pai dela, de usar sexualmente os mensageiros.
Uma vez que a ligação carnal dos dois já se havia transformado em sublimação, e uma vez que Jerome estava sendo usado sexualmente fora do amor de Nagiko, estabelece-se o CIÚME: por ciúme, ELA, para puni-lo, entra com a prostituição caligráfica, ou seja, volta ao status quo de seu prazer individual em ser caligrafada por qualquer um; enquanto ELE entra com a divulgação de seu ciúme e, envergonhado, com o suicídio.

O cineasta poderia ter evitado a menção de Shakespeare: as pílulas mortíferas, fornecidas por um amigo ocasional, teriam sido eficazes sem semear no íntimo do espectador a expectativa de um suicídio a dois, banalizando naquele momento uma estória que até aquele momento estava sublimada por uma cultura acima de qualquer sugestão ocidental. Resta a ver se o cineasta o fez por livre e espontânea vontade ou se a “citação” consta do livro (diário) da autora. Se esta última hipótese é a verdadeira, poderia ela ser atribuída à vontade de Nagiko de ocidentalizar-se? Aquela vontade era tão forte assim? Se era, está explicada a ansiedade dela de livrar-se de um prazer sexual tão oriental. Entretanto a forma como a tragédia shakespeariana entra no filme soou barato.
Mais momentos críticos do filme como arte cinematográfica: ele poderia ter terminado no enterro de Jerome, na conversa surda, inútil e leviana entre uma mãe-muito-britânica-dona-do-lugar-e-muito-pouco-mãe-de-Jerome, com uma Nagiko oriental, sim, mas agora vazia de emoções. Também a estória dos demais livros e das demais imagens - ilustrativas de uma cultura internacionalmente ainda abstrata - tornou-se um peso que não acrescentou à mensagem intrínseca do filme, cujo sentido intimista correu o risco de perder-se no prolixo que foi, em termos artístico-cinematográficos para nossa era e para nossa ocidentalidade.

Um comentário:

Escrevivendo disse...

Esta resenha de O LIVRO DE CABECEIRA foi produção espontânea de Bruna.

O texto está ótimo, bastante crítico e bem escrito, com o estilo já conhecido dessa escrevivente veterana.

Gostei muito!

Loreta