Trate-me como a página de um livro.
Nagiko, em O livro de cabeceira
Caros amigos,
No encontro deste sábado estivemos acompanhados da obra-prima que é o filme O livro de cabeceira (Pillow book, 1996), de Peter Greenaway (roteiro e direção). Não temos pretensão nenhuma de resumi-lo aqui, mas apenas de citar seus grandes temas e relatar o porquê dele no Escrevivendo Memórias Eróticas e como foi sua recepção em nossa turma.
O livro de cabeceira tem como protagonista uma japonesa cuja maior obsessão é a escrita e tudo que a envolve: textura do papel, seus odores, a espessura do pincel (utilizado na escrita oriental) e a tinta. Tudo pareceria muito comum e corriqueiro se a linda menina não escrevesse em corpos, a partir de um ritual ensinado a ela por seu pai, aos 5 anos de idade. Aos 5 anos também ela conhece o O livro de cabeceira de Sei Shonagon, o qual completaria mil anos quando ela completasse 28.
A película é mais importante para o Escrevivendo Memórias Eróticas do que podem pensar os escreviventes. Karen Kipnis, nossa coordenadora, revelou-lhes que o curso, na verdade, foi feito para o filme (ver coluna ao lado esquerdo), o que parece bastante apropriado, uma vez que estão em jogo a escrita e o sensual, corporal, carnal, erótico - parfait mélange.
Após a exibição do filme para a turma, fizemos um rapidíssimo intervalo e passamos a discutir o filme. Antes de dar nossa leitura, quisemos, como sempre, ouvir os escreviventes, cuja sensibilidade e senso crítico são tão apurados. Muitos gostaram dele, muitos não gostaram, mas certamente todos o estranharam muito. Posto que o estranhamento (ostraiênie) - como diria Chklóvski (1) em seu ensaio "A arte como procedimento" (2) -, é próprio da arte, teríamos, então, de saber por meio de que elementos o diretor o logrou, o que levaria também à discussão sobre os elementos eróticos do filme.
Os comentários, como sempre, não seguem nenhuma ordem especial, pois vai se dizendo aquilo que toca mais a fundo cada participante; cremos, entretanto, que, no geral, deram conta dos elementos mais importantes do filme, quais sejam - no âmbito mais superficial - a tradição oriental x a efemeridade ocidental; o valor da caligrafia para as escritas orientais; o preconceito contra a literatura e a dificuldade de publicar a própria obra. No âmbito mais profundo, surgiram comentários sobre a relação sensorial/ sensual entre a obsessão pelo corpo e pela escrita/ caligrafia, esta remetendo ao sentido da visão, e o papel, ao do tato e do olfato. Ambos, corpo e caligrafia, sempre estiveram ligados ao sagrado, ao Bom e ao Belo, daí a coerência e, até mesmo, necessidade de uni-los ("Há os prazeres da carne e os da literatura; eu tive o prazer de desfrutar os dois", diz Nagiko). O escrever na alma é completamente distinto, e ainda mais sério do que tingir o corpo com letras ("Escrever sobre o amor é encontrá-lo", haja vista que "Tudo se acaba ou se consome, menos o amor", diz Nagiko).
Além disso, refletimos também sobre a linguagem cinematográfica do filme. Lendo o ensaio de Maria Esther Maciel (3) (ver em http://www.revista.agulha.nom.br/ag23greenaway.htm), nós, mediadoras, chamamos a atenção dos escreviventes também para a busca de uma nova narratividade, buscada por Peter Greenaway, o que se mostra muito pertinente a nosso tema - memórias. Na narração, ainda mais no caso de um diário, busca-se selecionar fatos da memória e organizá-los de certa forma, entretanto ninguém tem exato controle sobre como funciona tal processo de seleção dos eventos experienciados. É com as listas - gênero que aparece insistentemente em O livro de cabeceira e em outras obras de Greenaway - que o cineasta, dialogando com Borges, parodia a tentativa de cosmogizar o caos - natural - que são a memória e o mundo "real". As listas, portanto, são um sucedâneo à narração tradicional, porém, como é impossível aquela organização, todas as listas resultam fantásticas. Segundo Maciel, trata-se não de "classificar racionalmente o universo, mas de revelar - através da ficção - o caráter arbitrário de todos os sistemas de classificação."
Logo mostrou-se ser impossível esgotar as leituras do filme em meia hora (!), mas, como dissemos, os elementos primordiais foram contemplados, os quais, certamente, darão conversa nos textos que aguardamos ansiosas até a semana que vem (para lembrar a proposta, ver postagem "Segundo encontro"). Havíamos planejado o comentário de uma novela do Decamerão também, mas ficou para a próxima.
1. CKLÓVSKI, Víktor. A arte como procedimento. In: Teoria da literatura - os formalistas russos. São Paulo: Globo, 1971. A tradução para o português é péssima, portanto sugiro ou a leitura no original russo ou a) em francês; b) em espanhol e c) em inglês, só que o título do livro muda conforme a língua, e o conteúdo da coletânea também, uma vez que título e seleção dependem do editor.
2. Forma que a arte tem de tornar “estranho” aquilo que tem uma existência comum nascido de um processo de automatização (processo que se confunde com a banalização do objeto de arte, que só por um outro processo de renovação poderá proceder a um renascimento da arte).
3. Professora de Teoria Literária da UFMG.
Um comentário:
No terceiro encontro do módulo 'Escrevivendo Memórias Eróticas'(25/10), ministrado por Loreta e Mafuane, não resisti... e apareci. Alef, para matar um pouco da saudade que sinto dos escreviventes ( até a Sandra do Textando 2005 estava lá!); Beit, para ver como correriam as discussões sobre o filme O Livro de Cabeceira (1995- inspirado no diário de Sei Shonagon) , de Peter Greenway.
Durante os comentários, a outra Sandra, a Schamas, disse estar surpresa com o 'casamento' entre o filme escolhido para a discussão e o tema deste Escrevivendo: o erotismo. Então, acabei revelando que este último módulo de 2008 foi pensado a partir deste filme, dando continuidade aos módulos Memórias e Memórias de Amor.
Assim como foi para o escritor e poeta Haroldo de Campos (segundo Maria Esther Maciel), Greenway é também meu cineasta contemporâneo favorito.
Há poucos meses, Maciel ( professora de Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da UFMG) esteve na Casa das Rosas e ministrou um curso sobre este diretor e suas obras. Ao rever parte do filme em questão, reencontrei belas reflexões que adoraria compartilhar em nossa oficina de leitura e escrita.
Como esta é uma breve explicação, vou parando por aqui, mas não sem antes deixar algumas indicações para leituras complementares:
1- A memória das coisas- ensaios de literatura, cinema e artes plásticas, de Maria Esther Maciel (v. bibliografia).
2- http://www.tulselupernetwork.com/basis.html
( um trabalho multimídia interessantíssimo)
3- O idioma analítico de John Wilkins, de J.L. Borges
4- http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/2499,1.shl
(sobre outras 'listas literárias')
Sábado, 08/11, teremos um debate entre os poetas Glauco Mattoso e Donny Correa, além da participação do filósofo e especialista em filmes "B", Valter José, sobre erotismo & (ou versus) pornografia .
Até lá,
KK
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